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TRIBUNAL JUDICIAL DA
COMARCA DOS AÇORES

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Discurso do Senhor juiz Desembargador Moreira das Neves, por ocasião da Homenagem de despedida (10 de janeiro de 2020)

Quero em primeiro lugar agradecer a presença de todos e dizer-vos que registo com grande satisfação quer a heterogeneidade quer a dimensão do grupo de pessoas aqui presente.
Depois gostaria de referir que estes eventos – estes jantares de homenagem/despedida – constituem a meus olhos uma boa tradição, que engrandece a cultura forense açoriana. Prestam-se, naturalmente, a exageros de retórica… (como acaba de se ver). Isso, porém, não faz mal nenhum; se calhar até faz bem…
Não vos querendo maçar, naturalmente, não posso contudo deixar de fazer uma brevíssima resenha sobre o percurso que me trouxe até aqui – até aos Açores e até este momento -, por se me afigurar relevante num evento com as características deste.
Após a formação no Centro de Estudos Judiciários e os estágios da praxe, tomei posse pela primeira vez como juiz em Loures, nos arredores de Lisboa, onde servi como auxiliar. E depois, em 1995, a meu pedido, fui colocado nos Açores, tendo sucessivamente servido nos Tribunais de comarca de Nordeste, de Vila do Porto, da Praia da Vitoria e de Ponta Delgada. Depois, durante 15 anos, exerci funções ordinárias como juiz de círculo na área geográfica do grupo oriental do arquipélago. Nesse ínterim exerci também, em acumulação, durante um ano e meio, como juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada. E extraordinariamente, também em acumulação, fui juiz no 2.º Juízo do Tribunal de Ponta Delgada; do Tribunal de Família e Menores de Ponta Delgada; e do Tribunal da Ribeira Grande. Por opção e gosto pessoal, exerci ainda, pontualmente, como substituto, no Tribunal de Trabalho de Ponta Delgada.
Ao contrário do que sucedeu com outros a minha vinda para os Açores não foi fruto de um acaso, nem uma qualquer fatalidade profissional, tendo antes esteio antigo que a maioria de vós desconhece e que vos narrarei brevemente.
Fiz o meu curso de Direito como estudante-trabalhador tendo exercido outras profissões, a última das quais como gerente bancário (no Banco Comercial Português – hoje Millennium BCP). Mas antes dessa tinha sido agente comercial de uma das maiores editoras livreiras nacionais, ao serviço da qual, no final da década de oitenta do século passado, vim aos Açores por três vezes, sendo que na última delas, recém-casado, em 1989, a minha mulher – a mesma de sempre - me acompanhou. Percorremos diversas ilhas do arquipélago e acabámos ambos enfeitiçados pela beleza das ilhas. De tal forma que regressados a Lisboa não mais deixámos de sentir «o apelo do Atlântico», começando a sedimentar-se em nós a ideia de que se a vida que projetávamos o proporcionasse seria para cá que viríamos… E viemos mesmo, em 1995.
Decorreram já quase 25 anos sem que nunca nos tenhamos arrependido dessa opção.
A maioria dos meus colegas – dos juízes - não sabe, mas em 1995 não era fácil ser juiz nos Açores. As condições estatutárias e as objetivas do exercício da profissão eram a vários títulos adversas. Na projeção da sua carreira qualquer jovem juiz era impelido por uma força imensa ao regresso aos meios metropolitanos - e o mais rapidamente possível -, para estar próximos dos centros de formação, da especialização, e das demais condições de uma carreira dita «normal».
Nessa altura na comarca de Ponta Delgada exerciam apenas três juízes, em Juízos de competência genérica, os quais tinham então a maior distribuição por juiz do país. Os serviços do Ministério Público funcionavam no corredor do primeiro andar do Palácio da Justiça... E os advogados não tinham sala própria…
Só os advogados mais antigos se lembrarão do calvário que era então a morosa e insane espera pelo fim de uma demanda…
Por isso mesmo, rompendo com o que era comum até então, em outubro de 1997 dois juízes resolveram «partir a loiça» - como se costuma dizer… Nunca tal se houvera visto: juízes virem a público expor a situação objetiva (deplorável) dos tribunais e dos serviços de justiça e exigir mudanças!!! Tal implicou, entre o mais, por exemplo, que os juízes mais jovens de Ponta Delgada se atrevessem a realizar uma conferência de imprensa, sem saberem bem como agir…; e depois um deles teve de ir à televisão debater com o Secretário de Estado da Justiça… Enfim, uma grande dor de barriga!
A maioria dos agentes da justiça estranharam a ousadia… Alguns até resmungaram! Mas também houve os que compreenderam e auxiliaram como puderam. Foi deveras um período muito difícil, mas soberbamente gratificante - visto à distância.
Na sequência de tudo isso o Senhor Ministro da Justiça teve de vir aos Açores e aqui deixar compromissos, na sequência dos quais pouco mais de um ano depois tudo mudava: o Tribunal de Ponta Delgada passou a ocupar todo o Palácio da Justiça (saindo de lá os serviços de registos e de notariado); os juízes de comarca passaram de 3 para 5; no ano seguinte instalou-se o Tribunal de Família e Menores; e na Ribeira Grande o quadro de juízes e de funcionários passou para o dobro. Ficou apenas por cumprir a promessa da especialização… só realizada em 2014.
Contei esta estória porque a maioria de vós a não conhece, mas precisa de conhecer, para tomar consciência que a «justiça» não é (apenas) uma burocracia: com empregos; documentos, papéis, capas, armários; tarefas; salários… etc. É antes um sistema, integrado na organização política do Estado, essencial em qualquer sociedade liberal e democrática, com freios e contrapesos, que pressupõe papeis diferentes para todos os profissionais: os procuradores não são juízes; os juízes não são funcionários; nem os funcionários advogados; e nem estes polícias. Este sistema pressupõe que cada um cumpre a sua parte, respeitando a de todos os demais (de todos). É nele tão inaceitável que um funcionário dê consultas forenses; como que um polícia aplique penas sumárias. Que um juiz recuse receber advogados no seu gabinete ao mesmo tempo que escancara a porta aos procuradores... E é-o ainda, neste nosso tempo, nesta hodierna sociedade aberta, que se esconda dos mediadores sociais informação não reservada. Entendamo-nos: o que é reservado deve manter-se reservado; mas o que não é reservado tem de ser público para ser escrutinado. É esta a essência da democracia e é justamente por isso que a letra e o espírito da lei o exigem.
Há ainda entre nós alguns tiques autoritários, advindos (e persistentes) da cultura política corporativa, que coloca o nós (do Estado) de um lado e «os outros» do outro… O Centro de Estudo Judiciários e o Centro de Formação de Oficiais de Justiça deveriam ter por missão, também, inverter este estado de coisas, mas na verdade, ao contrário disso, infelizmente, cultivam-no e disseminam-no.
É lamentável. Mas é assim mesmo.
Caros amigos,
Há na justiça açoriana nichos de excelência, que se tornam referências nacionais incontornáveis, que a todos nos deverá orgulhar. Esta é que é a nota que interessa reter.
Chegámos aqui fazendo um percurso longo (e necessário), que estando longe de terminado vai progredindo, sem prejuízo dos tais tiques e outras coisas menos boas que também vai havendo (e que todos sabemos onde moram)…
No percurso que vale a pena realçaria (lembrando) os seguintes traços e eventos:
- Em outubro de 2000, no contexto das iniciativas Justice Across the Atlantic, realizámos em Ponta Delgada uma conferência internacional sobre violência doméstica. Foi a primeira realizada sobre esse tema no país;
- O Compromisso Ético dos Juízes Portugueses, aprovado em 2008, teve a participação e contributo efetivo de juízes açorianos;
- Nesse mesmo ano (2008) os juízes açorianos mais qualificados passaram a ser tutores de juízes europeus, no quadro da Rede Europeia de Formação Judicial;
- Logo a seguir projetámos e depois realizámos em Ponta Delgada o Congresso dos Juízes Portugueses, em 2011;
- A primeira proposta de criação por via legislativa de um procedimento de justiça penal negociada, com articulado completo, foi integralmente gizada nos Açores, sendo apresentada na Assembleia da República em 2012, e publicada nesse mesmo ano;
- A primeira sentença produzida no país no contexto da justiça penal negociada, firmada na confissão – inspirada no modelo alemão -, foi prolatada em Ponta Delgada (também em 2012);
- E a tertúlia jurídico-especulativa denominada «Jornadas Açorianas de Direito», iniciada em 2010 e que já cumpriu cinco edições, ganhou um relevo e dimensão sem paralelo no contexto académico e forense nacional, o que só foi possível por se ter posicionado, desde início e até agora, num patamar de excelência que a tem preservado das pulsões, das fraquezas e das quotas corporativas… Espero que assim prossiga.
Caros amigos:
Sem nenhuma outra pretensão que não a da despedida – da minha despedida -, tendo plena consciência que o exemplo vale mais que a crítica, gostaria de terminar dizendo que foi para mim muito gratificante trilhar e partilhar convosco, nestes 25 anos, todo este caminho.
Um grande bem-haja a todos.
Até sempre.
José Francisco Moreira das Neves
10 de janeiro de 2020